Ortodoxia - G. K. Chesterton

Capitulo I - O Lunático



"(...) Atores que não sabem atuar acreditam em si mesmos, assim como devedores que não pagam suas contas. Seria muito mais verdadeiro dizer que um homem irá certamente falhar, precisamente porque acredita em si mesmo. A autoconfiança completa não é meramente um pecado; é uma fraqueza. Acreditar totalmente em si mesmo é uma crença tão histérica e supersticiosa quanto acreditar em Joanna Southcote. (...)

          Comecemos então com o manicômio; façamos dessa hospedaria maligna e fantástica a largada da nossa jornada intelectual. Se apelarmos para a filosofia da sanidade, a primeira coisa a fazer é apagar um erro enorme e comum. Vaga por aí a noção de que a imaginação, e especialmente a imaginação mística, é perigosa para o equilíbrio mental. Diz-se usualmente que os poetas não são psicologicamente confiáveis; e geralmente há uma vaga associação entre coroas de louro na cabeça e capacetes de bombril. Mas os fatos e a história contradizem completamente essa visão. A maior parte dos grandes poetas foram não somente sãos, mas verdadeiros homens de negócio; e se Shakespeare realmente cuidou de cavalos, o fez porque era o homem mais confiável para fazê-lo. A imaginação não gera a insanidade; é a razão que o faz. Não são os poestas que enlouquecem, mas os enxadristas. Os matemáticos e os bancários enlouquecem; mas raramente isso acontece com os artistas criativos. Não estou, de forma alguma, atacando a lógica: só disse que o perigo reside na lógica e não na imaginação. A paternidade artística é tão saudável quanto a paternidade física. Além disso, é digno de consideração que quando surge um poeta mórbido isso se dá usualmente porque ele tem um calcanhar de Aquiles racionalista em seu cérebro. Poe, por exemplo, era realmente mórbido; mas não por ser poeta, e sim porque era particularmente analítico. (...)
        E se os grandes homens da lógica são muitas vezes maníacos, é igualmente verdadeiro que os maníacos muitas vezes são grandes lógicos. (...) De fato, o dito comum sobre a insanidade é enganador: o louco não é o homem que perdeu sua razão, mas sim aquele que perdeu tudo exceto a razão.
          A explicação de um louco para uma coisa é sempre completa e muitas vezes satisfatória em um sentido puramente racional. (...) Mas ele está errado. Se tentarmos rastrear seu erro em termos exatos, não será fácil quanto supomos. Talvez o mais próximo que possamos chegar é dizer isto: que a sua mente se move em um círculo perfeito, mas estreito. Um pequeno círculo é tão infinito quanto um grande; mas apesar de ser idêntico na infinitude, não o é na grandeza. Da mesma forma, a explicação insana é tão completa quanto a sã, mas não é tão ampla. (...) Há algo como uma universalidade estreita; como uma eternidade estreita e apertada; e é possível vê-la em muitas religiões modernas. (...)
         Tomem primeiro o caso mais óbvio do materialismo. Como uma explicação do mundo, ele ter certa simplicidade louca. Tem a justa qualidade do argumento do lunático; temos ao mesmo tempo a impressão de que tudo explica e que nada explica. Contemplem algum materialista sincero e capaz, como por exemplo, o Sr. McCabe, e terão exatamente essa sensação única. Ele compreende tudo, e essa totalidade não parece digna de compreensão. Seu cosmos pode ser completo em cada mecanismo e roldana, mas ainda é um cosmos menos que nosso mundo. (...) Não pensa sobre coisas reais desta terra, sobre povos que lutam e mães orgulhosas, sobre o primeiro amor e sobre medo do mar. A terra é tão grande e o cosmos tão pequeno quanro o menor buraco em que um homem pode enfiar sua cabeça. (...)
          Se o cosmos do materialista é o cosmos verdadeiro, não é lá grande coisa. A coisa se encolheu. A divindade é menos divina que muitos homens; (...) As partes parecem maior do que o todo. (...)
          Pois devemos lembrar que a filosofia materialista, verdadeira ou não, é certamente muito mais limitadora do que qualquer religião. Em certo sentido, é claro, todas as ideias inteligentes são estreitas. Não podem ser infinitamente abertas. Um cristão é limitado no mesmo sentido que um ateu. Não pode considerar o Cristianismo falso e continuar a ser cristão; e o ateu não pode considerar o ateísmo falso e continuar a ser ateu. Mas há um sentido muito especial em que o materialismo tem mais restrições do que o espiritualismo.(...) O cristão está livre para acreditar que há uma grade extensão de ordem definida e de desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao materialista não é permitido admitir em sua imaculada máquina ao menos mancha de espiritualismo ou milagre.(...) O cristão admite que o universo é diverso e até mesmo uma miscelânea, assim como o homem são sabe que é complexo; que tem algo da besta, do demônio, do santo e do cidadão em si. Ele sabe até mesmo que tem um toque de loucura. Mas o mundo materialista é bem simples e sólido, assim como o lunático tem certeza de ser saudável. (...) Os materialistas e loucos nunca têm dúvidas.
            As doutrinas espirituais não são uma real limitação à mente como as negações materialistas. (...) A acusação contra as principais deduções do materialista também é que, certas ou erradas, gradualmente destroem sua humanidade; e com isso não quero dizer somente a bondade, mas também a esperança, a coragem, a poesia, a iniciativa, e tudo que é humano. Por exemplo, quando o materialista arrasta os homens ao completo fatalismo é inútl simular que se trata de uma força libertadora. É absurdo dizer que se está aumentando a liberdade quando se usa o livre pensamento para destruir o livre-arbíttro. Os deterministas vêm para aprisionar e não para libertar. (...)
              Há uma estranha falácia que diz que o fatalismo materialista é de alguma forma favorável à compaixão, à abolição das punições cruéis ou de qualquer tipo. Isso é exatamente o inverso da verdade. (...) A inevitabilidade dos pecados não evita a punição; e se evita algo, é exatamente a persuasão. O determinismo é tão capaz de levar à crueldade quanto certamente leva à covardia; não é tão inconsistente com o tratamento cruel aos criminosos. Mas é, talvez, inconsistente com o tratamento generoso dos criminosos; com qualquer apelo a seus sentimentos elevados ou encorajamento à luta moral . O determinista não acredita no apelo à vontade, mas acredita em mudar o ambiente. Ele não deve dizer ao pecador: "vá e não peque mais", pois o pecador nada pode fazer; mas pode colocá-lo no caldeirão de óleo fervente; pois o óleo fervente é um ambiente.(...)
         Há um cético bem mais terrível do que aquele que acredita que tudo começou na matéria. É possível encontrar o cético que acredita que tudo começou dele por ele mesmo. (...) Para ele, seus próprios amigos são uma mitologia por ele inventade. Ele cria seu pai e sua mãe. Essa horrenda fantasia tem algo de decisivamente atrativa para o egoísmo místico de nossos dias. Aquele editor que pensou que os homens subiriam na vida porque acreditam em si mesmos, aqueles caçadores do super-homem que sempre o procuram no espelho, aqueles escritores que falam sobre imprimir suas personalidades em vez de criar vida para o mundo, todas essas pessoas estão somente a um milímetro desse vazio monstruoso. (...)
           Tudo que nos interessa aqui, no entanto, é notar que esse extremo pan-egoísmo do pensamento exibe o mesmo paradoxo do extremo materialismo. É igualmente completo na teoria e igualmente paralisante na prática. (...) O homem que não pode acreditar em seus sentidos e o homem que não pode acreditar em nada mais estão ambos insanos, mas sua insanidade é provada não por algum erro em seu argumento, mas pelo erro manifesto de suas vidas inteiras. (...) É impressionante notar que muitos modernistas, sejam eles céticos ou místicos, tomaram por sinal um certo símbolo oriental, que é o próprio símbolo dessa nulidade final. Quando desejam representar a eternidade, representam-na pela serpente que engole o próprio rabo.¹ A eternidade dos fatalistas materiais, a eternidade dos pessimistas orientais, a eternidade dos altivos teosofistas e cientistas de alto escalão de hoje é, de fato, muito bem representada pela serpente que engole o seu rabo, um animal degradado que destrói a si mesmo. (...)
         O homem que começa a pensar sem os primeiros princípios apropriados enlouquece; ele começa a pensar pelo lado errado. (...) Mas podemos perguntar como conclusão: se é isso que leva os homens à loucura, o que é que os mantém sãos? Ao fim deste livro espero ter dado uma resposta definitiva - talvez muito definitiva para alguns. (...) O misticismo preserva a saúde. (...) O homem comum tem sido sempre são porque tem sido sempre um místico. Ele permitiu o crepúsculo; teve sempre um pé na terra e outro na terra das fadas. Ele sempre foi livre para duvidas de seus deuses; mas, diferente do agnóstico moderno, também foi livre para neles acreditar. Sempre se preocupou mais com a verdade do que com a consistência. Se visse duas verdades que pareciam se contradizer, ele aceitaria as duas verdades e junto com elas a contradição. (...) Assim ele sempre acreditou que existia o destino, mas também o livre-arbítrio; que as crianças eram de fato o reino dos céus, mas que deveriam obedecer ao reino da terra. Admirava a juventude porque era jovem e a velhice porque não era. É exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido responsável pela leveza do homem são. (...) O lógico mórbido busca tornar tudo lúcido, e só consegue tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e tudo o mais se torna lúcido. (...) Assim como tomamos o círculo como símbolo da razão e da loucura, tomamos a cruz como símbolo do mistério e da saúde. O Budismo é centrípeto, mas o Cristianismo é centrífugo: ele liberta. Pois o círculo é perfeito e infinito em sua natureza, mas está eternamente fixado em seu tamanho, nunca pode crescer ou diminuir. Mas a cruz, apesar de ter em seu coração uma colisão e uma contradição, pode estender seus quatro braços infinitamente, sem mudar de forma. (...)
            Os símbolos isolados são de um valor nebuloso ao se falar desse profundo assunto; e um outro símbolo da natureza física expressara suficientemente bem a posição real do misticismo para a humanidade. A única coisa criada para a qual não podemos olhar é aquela sob cuja luz podemos olhar para todas as coisas. Como o sol do meio dia, o misticismo explica tudo pelo brilho de sua triunfante invisibilidade. O intelectualismo desapegado é, no sentido exato do dito popular, um puro brilho lunar; pois é a luz sem calor, e luz secundária, refletida de um mundo morto. (...) Mas o transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem tem primariamente a mesma posição que o sol no céu. Somos dele conscientes como uma espécie de esplêndida confusão: é algo brilhante e sem forma, ao mesmo tempo uma chama e um borrão. Mas o círculo lunar é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável, quanto o círculo euclidiano no quadro negro. Pois a lua é completamente razoável: é a mãe de todos os lunáticos e lhes deu seu nome."

¹O ourobouros, famoso símbolo gnóstico e hermético. 




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